Recentemente, no dia 29/11/2016, a 1ª turma do STF julgou o Habeas Corpus (HC) 124.306/RJ pela suposta prática do polêmico crime de aborto. Em razão desse julgamento deu ensejo a novo debate sobre a legalização do aborto. Tema de enorme relevância para a advocacia criminal.
Entenda o caso do habeas corpus 124.306/RJ
Duas pessoas que mantinham clínica de aborto foram presas em flagrante na data de 14/03/2013, devido à suposta prática dos crimes de aborto e formação de quadrilha. Esses tipos penais encontram-se previstos nos artigos 126 e 288 do Código Penal.
Posteriormente à prisão, o juízo de primeiro grau concedeu a liberdade provisória aos indivíduos. No entanto, a Câmara Criminal proveu recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, para decretar a prisão preventiva dos pacientes. Os desembargadores fundamentaram com base na garantia da ordem pública e na necessidade de assegurar a aplicação da lei penal.
Na sequência, a defesa impetrou habeas corpus no STJ, que não foi conhecido pela Corte. O acórdão, porém, examinou o mérito e assentou não ser ilegal o encarceramento na hipótese. Deste modo, foi impetrado habeas corpus ao STF, sob a alegação de que não estavam presentes os requisitos necessários para a decretação de prisão preventiva. E para corroborar com o alegado, a defesa se utilizou do artigo 312 do Código de Processo Penal.
Nesse toar, a defesa sustentou que:
(i) os pacientes são primários, com bons antecedentes e têm trabalho e residência fixa no distrito da culpa;
(ii) a custódia cautelar é desproporcional, já que eventual condenação poderá ser cumprida em regime aberto; e
(iii) não houve qualquer tentativa de fuga dos pacientes durante o flagrante. Daí o pedido de revogação da prisão preventiva, com expedição do alvará de soltura.
Posicionamento do ministro Luís Roberto Barroso
O relator desse habeas corpus 124.306/RJ, ministro Marco Aurélio, deferiu a medida cautelar pleiteada (concessão do habeas corpus) para os dois impetrantes. Além disso, ainda estendeu os efeitos da decisão para mais dois corréus. Depois disso, o ministro Luís Roberto Barroso pediu vista antecipada dos autos para analisar detidamente o caso e disse:
“O bem jurídico protegido (vida potencial do feto) é evidentemente relevante. Porém, a criminalização do aborto antes de concluído o primeiro trimestre de gestação viola diversos direitos fundamentais da mulher, além de não observar suficientemente o princípio da proporcionalidade”.
O voto do ministro Luís Roberto Barroso alcançou a maioria e ficou afastada a prisão dos dois pacientes do habeas corpus 124.306/RJ. Fundamentou o supracitado ministro no sentido de não estarem presentes na casuística os requisitos que autorizam a prisão cautelar. Ademais, afirmou o ministro que a criminalização do aborto é incompatível com diversos direitos fundamentais. Para facilitar o entendimento destacou os direitos sexuais e reprodutivos e a autonomia da mulher, a integridade física e psíquica da gestante e o princípio da igualdade, demonstrando os direitos que foram violados.
Segundo Barroso:
“a criminalização da interrupção voluntária da gestação atinge gravemente diversos direitos fundamentais das mulheres, com reflexos inevitáveis sobre a dignidade humana”.
Direitos fundamentais violados da gestante
E quais seriam esses direitos fundamentais afetados? Segundo consta no voto-vista do ilustre ministro, estes direitos seriam: a autonomia da mulher; integridade física e psíquica; sexuais e reprodutivos da mulher, e igualdade de gênero, discriminação social.
Barroso também traz à tona questões sobre o status jurídico do embrião durante a fase inicial da gestação. E para isso ressalta duas posições antagônicas. Uma delas que sustenta que existe vida desde a concepção. Isto é, que já existe vida desde o momento em que o espermatozoide fecunda o óvulo. Ao passo que outros sustentam que antes da formação do sistema nervoso central e da presença de rudimentos de consciência não é possível falar em vida em sentido pleno. E que essa formação só acontece após o terceiro mês da gestação.
Decisões históricas sobre o aborto
No Brasil, o aborto se enquadra no título I do Código Penal Brasileiro que é referente aos crimes que são cometidos contra a pessoa. Este crime está em vigor desde 1984, nos termos dos artigos 124, 125, 126 e 127, do Código Penal.
No entanto, existem três situações em que o aborto não é considerado crime. São 3 situações onde o aborto pode ser praticado pelo médico, tais como:
I) Aborto necessário: Quando há risco de vida para a mulher e o aborto torna-se o único meio para salvar a vida da gestante;
II) Estupro: quando a gravidez resulta do crime de estupro;
III) Feto anencéfalo: no julgamento da ADPF de nº 54 votada em 2012, o STF decidiu julgar que é possível “antecipar o parto” nos casos de fetos anencéfalos. Com essa decisão ocorreu a descriminalização do aborto para fetos anencéfalos.
Impacto da decisão da legalização do aborto para fetos anencéfalos
O julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, de 12/04/2012 em que se decidiu pela constitucionalidade do aborto de fetos anencéfalos foi bastante polêmica e complicada na ocasião. Isto porque o julgado tocou em um tema que está enraizado na nossa sociedade brasileira e que foi construído em pilares religiosos.
Não podemos nos olvidar que o Estado Brasileiro que ora é Estado laico já foi na vigência da Constituição de 1824 um estado cuja religião oficial era a católica. Portanto, o viés religioso ainda é bastante presente o que faz com que o aborto seja visto por muitos como algo hediondo, pecado e algo imoral.
Por isso essa Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54 foi tão importante. De uma só vez ela mexeu com a questão legal e com a questão moral. Esse choque entre o direito e a moral é frequente muitas das vezes e, inclusive, é debatido por Kelsen na sua obra “Teoria pura do direito”.
Para este autor era problemático colocar a Moral e o Direito no mesmo âmbito porque não há moral absoluta. Segundo ele o que existe é uma moral relativa que se modifica com o passar do tempo e com as mudanças da sociedade.
Assim, na sua visão, o Direito tem que estar apartado da Moral porque o Direito não pode estar sujeito às possíveis mudanças que a moral sofre. Logo, uma ordem normativa não se deveria fundamentar com base em uma Moral absoluta ou Moral relativa.
Direito à vida vale menos que direitos sexuais de outrem?
O pacto San José da Costa Rica no seu artigo 4 diz:
“Toda pessoa tem o direito de que se respeite a sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.
Diante desse quadro de ponderação de princípios, surge a seguinte ponderação: seria então o direito da autonomia, o direito à integridade física e psíquica, os direitos sexuais e reprodutivos, e o direito à igualdade de gênero da gestante mais importantes que o direito à vida de outra pessoa que nesse caso é o feto?
Pelo voto do ilustre ministro significa que, sempre que estivermos diante de uma ponderação de direitos, os direitos sexuais da gestante deve sempre se sobrepujar sobre o direito à vida daquela que acabou de ser gerada. Na sua visão, os direitos sexuais da mulher pode ser exercido no mínimo duas vezes e sem ter que arcar com as consequências do seu ato até o primeiro trimestre da gestação. Uma para ter relação sexual sem preservativo e outra para ceifar a vida do feto no primeiro trimestre, ao passo que o embrião não tem direito a nada. E como que fica a análise dessas duas vidas sobre o prisma do princípio da isonomia?
Sabemos que no Direito, assim como na vida, os atos que praticamos possuem consequências. Quem comete homicídio tem como consequência um julgamento no tribunal do júri e, se for homicídio simples, responderá por uma pena de 6 a 20 anos de reclusão. Se você der um soco em alguém na rua provavelmente levará um soco como resposta também. Da mesma forma, se que se uma mulher tem relação sexual sem usar preservativo, ela poderá engravidar.
Descumprimento do Pacto San José da Costa Rica
Ainda que pesem divergências doutrinárias acerca do status jurídico do embrião não seria melhor aplicarmos o tratado internacional do Pacto San José da Costa Rica do qual o Brasil, inclusive, é signatário? Aliás, qual é o sentido de ser signatário do Pacto San José da Costa Rica se o Brasil não cumpre todos os seus artigos? Tendo em vista que o artigo 4º do Pacto San José da Costa Rica diz que o direito à vida deve ser respeitado desde a concepção, os ministros não deveriam ter protegidos os direitos do feto em vez de optar por protegê-los apenas depois do primeiro trimestre?
Sabemos que o assunto é bastante polêmico e traz diversos questionamentos. Tanto para quem é favor, como para quem é contra o aborto. Importante também dizer que essa decisão do STF teve efeito apenas inter partes. Portanto, os demais julgadores não têm a obrigação de acompanharem esse entendimento. Porém, é inegável que o habeas corpus 124.306/RJ pode ser o início de uma nova mudança de jurisprudência.
Agora é a sua vez, já falei demais… Qual é a opinião a respeito do aborto?